CIDADE MEMÓRIA

Edição n.2

ÍNDICE:


A primeira impressão, a cidade memória, o prazer da escuta.


A segunda edição do Flanar Aprendiz nasce com a inquietação de buscar a relação entre a cidade e a memória. Os rastros do passado no presente, os vários tempos que nos cruzam. E também com um convite a outros sentidos, para além da visão. A escuta, a possibilidade de ouvir os sons ao redor, as conversas que atravessam as ruas, o canto dos pássaros, o murmúrio secular das casas.


Nos tempos modernos, nem sempre nos atentamos ao que nos está mais próximo. E o ato de flanar nos convida a abrir nosso olhar para esse contorno sutil. Nesta edição, buscamos trazer essa vizinhança, reforçando os laços mais próximos de escuta.


Cauã Cardoso nos apresenta dualidades da vida, que foram avistadas por meio de olhos infantis e que nos traz reflexões sobre sobre viver e como todas as coisas são efêmeras, divididas entre o sim e o não e suas respectivas consequências.


Os espaços da memória se fazem presentes na rica narrativa do Seu Zulmiro, descendente dos indígenas que habitavam a região de São Carlos, antes da dita civilização, registrada em vídeo por Bueno, João e Andrei. Hoje, morador da Vila São José, lugar que quando chegou era “só mato”, encontramos seu Zulmiro numa manhã de inverno. Ele contou as histórias de sua vida e nos encantou com a poesia de suas criações. Músicas da tradição caipira, narrativas dos modos de vida que quase já não há. Mas convidam a um futuro que se encontra no passado.


Cássia, por outro lado, nos traz Clarissa, história infantil inspirada em suas observações em São Thomé das Letras - MG. O quartzo, também conhecido como Pedra de São Thomé é um dos principais produtos exportado e vendido, principal forma de economia da cidade. Mas o pó da pedra é muito prejudicial para a saúde, as explosões na pedreira alteram a paisagem natural.


De Araraquara, veio um ensaio fotográfico de José Ângelo Santilli. O sentido das imagens desliza entre a metonímia e a metáfora. A espiral é um convite à nova perspectiva, tal como simples plantas podem mimetizar notas musicais. 


Ingrid Rolim nos mostra como é chegar em São Carlos, a impressão daqueles que vem em busca do sonho tecnológico e educativo, encontram amor e fuligem.


Em "Pemba de Lavadeira", Bueno nos relata, intrinsecamente, sobre a vida de uma lavadeira de São Carlos. A fotografia "Ordem e respeito" traz a sensação de liberdade e conforto e natureza. Uma igreja de cidade rural (em Muzambinho - MG), captada pela lente de Bueno, onde as cercas dividem o gado dos homens.

  

Em seu poema "Mais estrelas", Moisés busca falar sobre pequenos detalhes e belezas singelas.


Aline de Carli registra a imponência de uma igreja, resistente ao tempo, enquanto, do lado de fora, as flores nos lembram que a vida é cíclica. 

É dela também o registro dessas inversões linguísticas como espaços de resistência, na cidade discurso, ordem combina com respeito.


Em "sala de espera", Mariana nos conduz num silêncio pleno de sentido, enquanto espera sua vez de ser atendida numa clínica. 


Criança Passageira


Cauã Cardoso

Seu Zulmiro - Memória Viva

Em dezessete de Agosto deste ano, parte do nosso grupo de pesquisa do projeto de extensão: Flanar aprendiz, um verbo para novos tempos, teve o prazer de encontrar-se com senhor Zulmiro Victor. 

Morador da cidade de São Carlos há muitos anos, Zulmiro dispõe de uma memória que relembra os tempos em que a Universidade não existia e o trânsito ainda acontecia a pé, a cavalo ou de trem. Compartilhamos nesse vídeo um pequeno trecho de suas memórias e histórias sobre a cidade.

Clarissa  


Clarissa tinha os olhos negros e a pele amendoada. Ela gostava de ouvir os pássaros e de brincar com as pedrinhas coloridas que enfeitavam a estrada de terra com as outras crianças. 


A menina sempre observava a natureza com muita atenção. 


Um dia ela saiu para passear com a sua mãe e notou, naquela tarde quente, enquanto caminhava na estrada de terra, algo diferente no chão. 


A menina ficou encantada, elas eram muito brilhosas! 


Clarissa disse a sua mãe: - tem muita estrela no chão. 


A mãe da menina sorriu e respondeu: 


- Clarissa, não são estrelas, são grãos de areia que brilham com o reflexo da luz do sol.  


A menina não sabia, mas todo aquele brilho refletido na terra era pó de pedra, que vinha da pedreira. 


Cássia Dos Santos

Espirais

José Angelo Santilli

Espirais representavam o movimento dialético da história: do embate entre a tese e a antítese surge a síntese.

Atualmente as espirais serpenteiam os muros nas cidades, síntese da desigualdade e da violência urbana.


De pétalas e fuligens: chegada. 


Ingrid Rolim 

Só mais uma rodovia, só mais uma rotatória, só mais uma praça...e cheguei em casa.

São Carlos é uma cidade plana se comparada a Minas Gerais. 

Há uma avenida homônima à cidade que atravessa todo o município, por meio dela é possível chegar em absolutamente qualquer lugar que desejar. O transporte público não é um dos melhores, são várias reclamações, entretanto, é deleitoso pegar o ônibus para um local distante e ler um bom livro enquanto espera o ponto a descer.  As pessoas daqui tem um sotaque diferente e, às vezes, engraçado. Tia, leite quente, sorvete, todo o T é falado como T de Tatu e não com o de Tchau. 

A arquitetura não é maravilhosa, entretanto as ruas são bem organizadas. Os espaços culturais são interessantes e as festas são únicas. 

Conhecida como capital da tecnologia, há quem diga que a cidade faz jus ao nome. Está mais para capital do clima, afinal o tempo aqui é sempre um mistério. Se a previsão estiver com 1% de probabilidade de chuva, o cidadão deve andar com um guarda-chuva, caso contrário corre o risco de se molhar. 

Com 4 universidades, três públicas e uma privada, São Carlos é como uma estação de metrô, onde embarcam e desembarcam pessoas. Bem aventurados aqueles que ficaram ou não, a cidade fantasma acaba não sendo do agrado de todos. Fantasma é o tom, a voz e o véu que a estação usa, uma vez que, sem as pessoas que por aqui transitam e estudam, não restaria mais nada. 

Uma cidade onde o inimaginável acontece. Local onde amores amargurados são enterrados como uma cápsula do tempo, mas ao invés de desenterrá-la, a força do esquecimento faz com que ela fique por lá, perdida pelos anos a ponto de não saber mais o local onde foi colocado gentilmente sob o solo. Todavia, São Carlos é um ambiente de descoberta, onde o amor surge  como uma pena que cai do céu. Porquanto, com o passar do tempo, um ser tão cruel, aos amadores que almejam a coisa amada, descobrem que essa pena era, na verdade, uma fuligem e que quando apanhada e cerrada no punho, desaparece, deixando apenas as marcas de que um dia alguém foi feliz.

Notas Musicais

José Angelo Santilli


Urge a reconciliação do ser humano com a natureza, sob a mediação da cultura.  

No Antropoceno predomina o impacto predatório da ação humana sobre a natureza.

Vivemos um período em que a natureza foi reduzida a recursos a serem explorados.

Neste reinado da distopia ainda é possível vislumbrar notas musicais numa simples touceira de capim.



Pemba de Lavadeira


Por:  Bueno

Mais Estrelas



Moisés Almada

Igreja Muzambinho


Por:  Bueno
Por: Alice de Carli 

A SALA DE ESPERA 


Mariana  da Silva Correa Santos 

Desci do ônibus há poucos metros do endereço, pelo menos era o que dizia o  GPS no meu dispositivo. Apesar de ser uma rua bastante conhecida por mim, andei o percurso me sentindo um pouco perdida, em minha memória nunca tinha  percebido nenhum consultório naquela rua. Já eram quase 8 horas, e meu exame estava agendado para às 8h15, estava começando a achar que havia  anotado o endereço errado quando avistei um grupo de pessoas aglomeradas  na frente de uma grande casa e olhei por cima do portão o letreiro na parede. Lá  estava a clínica. Ri comigo mesma, pois jamais pensaria que uma bela casa  como aquela pudesse ser um consultório. Logo percebi que o lugar estava fechado pois todos estavam aglomerados ali na frente de um portão de garagem – sim um grande portão de garagem – para que pudéssemos ser atendidos.  

Finalmente um rapaz muito simpático vestido todo de branco abriu o portão e sem nenhuma cerimônia nos convidou a entrar. A essa altura já sabia que não  seria atendida às 8h15, mas fiquei feliz por isso, pois como uma típica tímida estava mais preocupada em compreender como funcionava o atendimento para  não fazer nenhuma cena. Depois de perceber que havia me esquecido de levar  um livro para passar o tempo, passei a observar o ambiente para me distrair.  Fiquei naquele interessante espaço por cerca de uma hora e alguns minutos  aguardando meu momento de ser atendida com um grupo de pessoas bastante  distinto. Depois de relatar minhas impressões sobre o local para algumas  pessoas, descobri que a clínica era na verdade uma casa, que pertenceu a uma  antiga e conhecida médica da cidade e que foi herdada por seu filho que era um  dos médicos do estabelecimento.  

Notei que em seu interior a estrutura da casa foi mantida, assim como muitos  bens queridos da falecida médica. Ao passar pela porta da entrada, vi que as paredes do local eram feitas de finas ripas de madeira envernizadas em um  longo corredor com iluminação amarelada parecia nos levar para um clube ou  pub com temática das décadas de 1950 a 1970. O corredor conduzia para uma  grande sala com balcão de atendimento e repleta de móveis antigos também de  madeira, como um piano antigo, uma grande mesa e estantes ornamentadas  expondo objetos diversos, por vezes me senti como se estivesse em um cenário 

de filme de época. Havia vários quadros também, e tanto eles quanto a mobília aparentavam ser bastante raros e muito bem conservados, como um sofá branco  Luis XV, disposto para uso dos pacientes aguardarem seu atendimento. As janelas gigantescas e brancas com cortinas delicadas e transparentes estavam  abertas e davam vista para uma bela piscina bloqueada por um cercado baixo. 

No grande balcão de madeira, que mais parecia a recepção de um hotel rústico  histórico, o rapaz vestido de branco (um enfermeiro) muito simpático e silencioso  atendia os pacientes. Esses, que ali aguardavam o atendimento, estavam todos  acompanhados, exceto eu. Os primeiros a serem atendidos foram uma senhora  com seu filho, que não parecia estar muito satisfeito de estar ali e preferiu passar  o tempo fumando próximo da piscina, mesmo depois de ser solicitado na sala de  exames. Seguido deles um casal arrogante, que parecia conhecer o enfermeiro  e estavam ansiosos para serem atendidos antes dos outros, passaram seu  tempo não comentando sobre a mobília do local, lançando periodicamente olhares de reprovação para um divertido e descontraído casal do outro lado da  sala que aguardavam pacientemente envolvidos em sua conversa bastante  humorada da qual em alguns momentos podia-se ouvir alguns palavrões que  incomodavam alguns dos presentes.  

Pouco depois chegou na sala de espera uma criança, uma garotinha que não  aparentava ter mais de 6 anos e parecia ser bastante hiperativa e curiosa correndo na sala e gritando:  

- MAMÃÃÃÃE! MAMÃÃÃÃE! Tem piscina aqui! Tem piscina aqui! Logo atrás veio a mãe, não devia ter mais de 30 anos, uma jovem mulher da alta  sociedade, muito simpática e preocupada com impressões alheias. 

Até aquele momento eu estava bastante entretida com o local e apesar da  demora no atendimento me sentia satisfeita e confortável observando quão  divertidas e diferentes eram as pessoas que ali esperavam comigo. Mas depois  daquele momento, o momento da inesquecível chegada da mãe e da garotinha  o ambiente mudou consideravelmente, toda a peculiaridade do cenário e  personagens incomuns foi convertido para um profundo incômodo, visto que a  dinâmica da mãe e da filha era bastante problemática. 

De longe e seguindo a menina a mãe gritou:  

- PERAÍ, LOISE! – se aproximando do balcão disse – Oi moço, eu tenho  uma consulta daqui 10 minutos. 

- Ok, Juliana Oliveira, né? – respondeu o enfermeiro. 

- Isso! 

- Ok, você pode esperar ali? Estamos um pouco atrasados hoje, então vai  demorar um pouco, tá? 

- Obrigada. – se dirigindo para um sofá disse – LOISE, senta aqui filha. Segurando uma das revistas dispostas sobre um móvel para os pacientes, a menina chegou perto da mãe e disse: 

- Mamãe tem piscina aqui. A gente pode entrar na piscina? Sim, mamãe? - Não, não pode entrar lá, fica quietinha. Larga esse livro, você não lê,  para de ficar mexendo nas coisas porque depois você não sabe arrumar. - Mas mamãe eu quero ver. Vamos lá fora ver a piscina? 

- Não! 

A menina se aproximou da mãe que estava sentada no sofá e pegou o rosto dela  com suas mãozinhas e deu um beijo na bochecha, em seguida deu um abraço 

na mãe que retribuiu e ficaram trocando algumas palavras sobre como era linda  a piscina e sobre a provável demora para o atendimento. 

Em um certo momento Loise se levantou e correu para perto do balcão, voltou  correndo para a mãe e cutucando seu braço perguntando entusiasmada: - Mamãe eu posso pegar? – disse apontando para o bebedouro. A mãe avaliou o objeto, olhou para a filha e respondeu sem demora: - Não! você já bebeu água antes de vir. 

- Mas eu quero, EU TÔ COM SEDE! 

- FICA QUIETA LOUISE! – gritou a mãe censurando a menina por falar  alto num ambiente tão quieto, e continuou em sussurro – Eu não sei mexer nele,  nem você, deixa isso aí. 

- Mas eu quero mamãe, eu fico quieta depois. 

- Tá bom! – Levantou e pegou um copo e encheu com água, e entregou  para a menina - Toma! E vê se fica quieta aí, então! 

Em seguida, o telefone de Juliana toca e ela atende de costas para a filha. Loise  derruba algumas revistas no chão e se dirige ao bebedouro. A mãe desliga o  telefone e quando se vira novamente para a filha vê que ela deixou o botão do  aparelho ligado e pouco depois dela perceber a água começou a escorrer pelo  chão.  

- LOISEEEEE! – gritou ela furiosa desligando o aparelho – Meu deus,  menina, você quebrou esse negócio? – pegou a menina pelo cotovelo e se  aproximando do sofá disse – Senta aí e fica quieta!  

A menina começou a chorar assustada com os gritos da mãe. Juliana se virou  para o enfermeiro e disse em uma voz doce e suave, quase pedindo desculpas:  - Moço, moço! Licença, você tem um pano? 

- Tenho sim, mas pode deixar que eu já seco aí. 

- Não, não precisa, pode deixar… - se virou para a filha e disse – É você  que vai enxugar a água, ouviu menina? 

Já passado o susto e apenas choramingando a menina respondeu: - Mas mamãe eu quero água! 

Após secar o chão ela mesma, a mãe se dirige a filha no sofá e segurando ela  pelos braços sacode a menina dá um tapa nas pernas e em tom de ameaça sussurra: 

- SENTA-AQUI! Eu vou falar para o seu pai, ouviu? Eu não vou mais  deixar você sair de casa. Você vai ficar trancada lá, não vai mais ir pra escola,  nem lugar nenhum! 

- Mas, mãe, porq.. 

- Não! Porque você não me respeita e não se comporta em lugar nenhum.  Eu não devia ter trazido você, você sempre estraga as coisas. Agora vê se fica  quieta aí! 

A menina tentou se levantar, mas a mãe a pegou pelo braço e insistiu para que  ela ficasse sentada. Alguns minutos de silêncio se passaram na sala sem que  ninguém proferisse uma única palavra, e eu mesma já havia encontrado um 

artigo na internet para ler, entre uma olhada e outra para as duas figuras durante minha leitura percebi que Louise passou o tempo olhando de um lado para o  outro e parecia procurar algo que a libertasse do castigo da mãe, e mexendo  com os dedinhos no tecido do sofá esperando talvez que ele revelasse algum  segredo que a distraísse. De repente a delicada voz da menina rompeu o silêncio e puxando o tecido da blusa da mãe ela perguntou:  

- Você está brava mamãe?... 

Sem receber uma resposta ela começou a puxar mais o tecido e prometeu:  - Mamãe desculpa, eu me comporto, desculpa mamãe, sim mamãe? A mãe, já conhecendo os hábitos da menina, nem desviou o olhar do aparelho  em sua mão e respondeu de forma áspera: 

- Quieta! Você está de castigo! 

- Não estou não, eu não fiz nada – respondeu a menina indignada  cruzando os braços. 

O gesto da garota pareceu incomodar muito a mãe que aumentou um pouco o  tom da voz e ameaçou: 

- Você vê se você me respeita, menina, senão você vai ver só, sua filha  da mãe! 

- Eu só queria ir na piscina, mamãe. 

A mãe fechou os olhos e soltou um suspiro de cansaço abaixando a cabeça.



Ordem e respeito


Por:  Bueno