Edição n.1
Ao leitor,
Flâneur: avesso à pressa, simpático ao ócio, à contemplação dos detalhes, fragmentos
Qual o sentido de se retomar, a essa altura, esta figura? O filósofo alemão Walter Benjamin destacou em suas reflexões, a singularidade do flâneur, o poeta moderno, do século XIX, representado por Baudelaire, escritor parisiense. O flâneur é um personagem urbano, porém burguês, que escolheu fazer da rua a sua casa.
Benjamin via no flâneur a resistência, o limiar entre um olhar crítico sobre as transformações na vida urbana e sua captura pela lógica do mercado, no momento em que a cidade luz se transformava no espaço das lojas e magazines. Baudelaire, para Benjamin, se utiliza da alegoria para demolir a fachada harmoniosa do mundo que o cercava, tomado pelo mercado. O que faz é enfrentar a “crescente atrofia da experiência” que faz do homem na multidão um autômato.
Hoje o limiar é de outra natureza. Não é difícil sustentar a posição da impossibilidade do flâneur. O medo do assalto, a cidade dos automóveis, as ruas interditadas por códigos vários, as prioridades do sustento, do corre. É a realidade brasileira. Ainda assim, vislumbramos possibilidades. O cansaço da pressa, a necessidade de pausa. O limiar hoje diz respeito ao tempo, à qualidade com que o desfrutamos.
Um caminho que nos leva também às cosmologias indígenas, a conhecimentos ocultos sob o véu ilusório da modernidade. Descolonizar o flanar, encontrar traduções possíveis em outras línguas.
O flaneur do século XIX ressurge como aprendiz, palavra inspirada no turista vivenciado por Mário de Andrade, no calor do nosso modernismo. (Re) aprender a observar, se perder nos detalhes e na capacidade de transformar essa experiência em linguagem. Nas fotografias que escrevem com a luz, nos desenhos, nos vídeos e áudios, nas prosas e poemas. Reaprendemos também que havia algo de silêncio na figura masculina do flâneur. Para as mulheres, o olhar livre tem exigido muita luta e resistência.
Assim, chegamos a primeira edição do Flanar Aprendiz: um verbo para os novos tempos.
Venha conosco!
Maria Sílvia , em foto e verso, nos leva num passeio por Paraty, antes de um céu estrelado, prenúncio de memórias que movem poesia.
Bueno nos lembra que cada ser é um universo, divagar é devagar e exige outra disposição de espírito.
Rodolfo voltou sem pão, trouxe poesia.
Moisés nas vias da vida, experimentou a invisibilidade.
Como os pássaros da cidade que olhamos,mas não vemos, flagrados por Kimie Inamassu.
Ao som dos passos o imaginário voa, escute com João Magalhães Terena.
Fátima descobre por um triz, borboleta é flor que voa.
Os sentidos plenos para encontrar a alma das ruas nas experiências rolê de Ique.
Kairós no lugar de Chronos, leia o manifesto do movimento anti-selfie.
Passeio de barco em Paraty/RJ
Três Perguntas, apenas
Maria Sílvia Cintra Martins
Nos rebrilhos entre marolas
Prenúncios de um céu estrelado
Ainda por vir
- Ou será que as estrelas
Apenas refletem memórias
De águas passadas
Que já não movem moinhos?
Passeio de barco em Paraty/RJ
No vão entre as rochas
No vagar das ondas
Na espuma entre as pedras
No sol que se ausenta
E permanece
No rebrilho das folhas
Na crista dos marulhos
Ou no espelho rochoso
Onde se infiltra...
O que é isso
Que estando presente
Ainda se ausenta
E permite um vislumbre
De algo por conquistar
Na distância?
Praia do Sono em Paraty/RJ
Sem o abrigo das águas
A tartaruga se entrega
Aos urubus
Eles deixam rastros
Já lhe comeram os olhos
E voltarão
E voltarão
Até que lhe reste
Talvez
Um pequeno pedaço
Do casco
Que mar raivoso
Te jogou assim, tão indefesa
- De onde essa raiva
Por que essa presa?
De rolê
Dois dias em São Paulo, a cidade tem uma dimensão flaneur, de fácil acesso. Basta não estar com pressa, não ter de enfrentar o trânsito caótico e o transporte coletivo desumano (coisas que levam a pensar na impossibilidade do flanar no Brasil contemporâneo).
No sábado de manhã, no cruzamento da Augusta com a Avenida Paulista, ouço sons de carnaval em plena quaresma. Um cortejo desce a rua Augusta, sopros, batuques. Apresso o passo para ver do que se trata. Chama-se Fanfarra Clandestina. A música é Frevo Mulher, de Zé Ramalho. Um dos acompanhantes me conta que vão até o centro. O calor e o sol deixam tudo mais animado e feliz. Sigo um pouco pela Augusta e me despeço da música.
Encontrar expressões no nosso idioma para a ideia do flanar. Bater perna, ir por aí, caminhar de boa, dar um rolê? É necessário como prática linguística decolonial. A música brasileira ajuda. Lembro de “Preciso me encontrar!”, samba de Candeia, gravado por Cartola. “Deixe-me ir, preciso andar, vou por aí a procurar, rir, pra não chorar.” Há flanar numa variedade de músicas na canção brasileira.
... cont.
Cada ser é um universo
Hai Kai Flanar
Rumo à padaria
lua eclipse rojão
volto sem pão
Por Rodolfo Magalhães
Invisível
Olho
De rolê 2
As impossibilidades do flanar. Faltam passeios, temos de desviar de restos de construção e ficamos expostos ao risco dos carros nas ruas e avenidas. Horários que não são recomendáveis. A face da violência contra pobres, mulheres. Ameaças. Os condomínios fechados, os viadutos e avenidas. A cidade dos carros. Olhar as impossibilidades é assumir a dimensão política e o sentido da prática.
O domingo de manhã é dia de Avenida Paulista fechada para os automóveis. É um espaço do flanar por excelência. Tem aqueles que estão se exercitando, outros muitos trabalhando, vendendo os produtos nas barracas. Uma banda toca rock, outra jazz, um solitário canta, ao violão, que o samba não pode morrer, turistas tiram fotos. A existência e persistência desse espaço revela uma fresta para o ato de flanar. Poderia se tornar prática em outras cidades e espaços.
... cont.
Pássaros
Bater pernas
De rolê 3
Um dilema da fotografia, tão repisado quanto real. Os equipamentos que fotografam criam barreiras. Só sem câmaras, é possível acessar certos olhares. A densidade de um olhar de um mendigo, o desconsolo em um senhor de meia idade. Cenas que não resistem a artificialidade de um clique. Para isso, existem as palavras. E flanar é ser um pouco invisível
Uma questão. Os feeds da rede social é o flanar como simulacro? Sedentários, percorremos com os olhos aquilo que a inteligência artificial nos devolve. E ficamos um pouco presos nesse universo, muitas vezes improdutivo, embora surjam coisas interessantes.
Por Ique Varoni
Muz
Quadrinha
Quadrinha
Sou melhor aprendiz
quando estou por aí, à toa
e num instante descubro, por um triz:
borboleta, é flor que voa.
Por Fátima Camargo
Manifesto do Flanar Aprendiz
Ficha Técnica
Flanar Aprendiz é um projeto de extensão do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos, em parceria com o Instituto Mário de Andrade, IMA.
É uma iniciativa do grupo de pesquisa Tessituras, coordenado pelo Professor Pedro Varoni e reúne os seguintes integrantes.
Andrezza Jaquier Pigozzo de Oliveira
Cássia Santos
Daniel Perico Graziano
Fátima Camargo Catalano
Fabíola Bueno de Souza
Gabriela Campos Ferreira
Ian Rittmeister Mazzeu
João Paulo Ribeiro
João Pedro Magalhães Terena
Lucas Augusto Pires Contessotto
Luiz Rodolfo Magalhães
Maria Sílvia Cintra Martins
Mariana da Silva Correa dos Santos
Moisés Almada Melo de Paiva
Pedro Henrique Varoni de Carvalho
Rodrigo Cavelagna
Ricardo Loiola Vieira
Sônia Maria Ribeiro
Thaisa Pinheiro
Vinícius dos Santos Ribeiro