De rodoviária em rodoviária
Conto
Por: Isabela Herrera Marques
Da janela do ônibus, Guilherme observa a rodoviária de sua cidade se afastando cada vez mais, há dias vem se preparando para essa viagem que prometia render muito conhecimento e fatos que nem imaginava. Embarcou em Belo Horizonte na madrugada e em uma terça-feira ensolarada de novembro desembarcou. O estudante apenas imaginava as coisas que deveria fazer quando chegasse ao seu destino, a Universidade Federal de São Carlos, que estaria recebendo o Congresso do Flanar em seu espaço por quatro dias. Não poderia perder tamanha oportunidade.
Ao todo, se programou para ficar na cidade por 4 dias, de terça a sexta-feira após a última apresentação do congresso. Percebeu seu coração sair pela boca e o quanto a empolgação deixava-o agitado e resolveu focar nas coisas mais importantes: o check-in no hotel que reservara há um tempo e o credenciamento do evento.
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Primeiro dia
“Que calor!”
Foi a primeira coisa que o garoto pensou após horas intermináveis de viagem.
O mineiro desacostumado com o calor abafado do interior de São Paulo logo estranhou, mas seguiu caminho até a calçada da rodoviária. Comparado de onde veio, Guilherme notou quão simples e pequeno o lugar era, e que por ele passava um fluxo constante de pessoas diversificadas. Logo buscou por seu celular, a fim de chamar um carro de aplicativo que o levasse ao seu destino.
Chegando no hotel, logo se localiza ao ouvir alguns comentários animados sobre o congresso, e então opta em seguir em direção à fila da recepcionista para os devidos procedimentos.
- Senhor Alcântara, sinto muito, mas não consta nenhuma reserva em seu nome no nosso hotel.
- Como assim? Selecionei tudo os trem lá no site e tudo mais.
- Entendi. Então… acredito que o Senhor não finalizou a reserva.
- Custoso de acreditar, o que faço agora, moça?
Aborrecido com a situação irreversível, ele arrasta a mala pela porta de entrada, e olha para seu relógio exclamando:
- Olha a hora! O horário do credenciamento já começou, tenho que correr para enfrentar a fila, ou, então, não terei tempo para arrumar um lugar para ficar - não tendo outra opção, pega sua bagagem e parte para a Federal.
Apesar de tantos empecilhos em seu caminho, a felicidade não perdeu o espaço. Enquanto aguardava na fila, andou fazendo umas pesquisas na internet a respeito de um local bom para ficar e que caberia nas suas economias de viagem, que já estavam saindo do planejado. Sem sucesso, lembrou do clássico provérbio que sua querida avó sempre dizia: “quem tem boca vai à Roma” e partiu em direção ao restaurante lotado no qual havia passado quando chegou.
- Olá, desculpa atrapalhar, mas preciso de indicação de um lugar acessível para ficar durante esses dias.
- Olha meu filho, neste momento não me passa nada pela cabeça.- Respondeu a senhora afobada com o grande movimento.
- Mas tenho certeza que lá pelos lados da rodoviária você encontra alguma coisa assim, tem muita república e kit que faz esse tipo de serviço. Se afastando com a mão na cabeça, diz:
- Uai! Mas não é possível que vou voltar pro lugar de onde eu cheguei! Sem outra alternativa, Guilherme chama mais um carro por aplicativo e retorna a rodoviária.
- Boa tarde, tudo certo? - É recebido pelo motorista.
- Boa tarde, tudo indo na medida do possível, que dia sô! - o garoto faz uma pausa para respirar, mas logo continua.- estou procurando um lugar pra ficar e me falaram que existem muitos perto da rodoviária.
- Pois é, tem muita coisa naquela região. - Responde o motorista. - E o que eu faço? Fico lá parado olhando em volta? - E é apenas respondido com a gargalhada do motorista.
Chegando ao destino, o mineiro se encontra perdido “como pode não prestar atenção na finalização? Agora está literalmente sem abrigo!”, pensou ele. Joga a cabeça para cima e encontra o relógio no teto indicando fim de tarde.
Já em estado de desespero sai andando perdido para a parte de cima da rodoviária, irritado e cansado, fazendo movimentos bruscos com os braços, o que provoca e assusta alguns pombos que estavam andando.
- Que maravilha, devo estar tão fedorento que causo repúdio até mesmo nos animais - diz apontando para onde os pombos pousaram.
E quando percebe, bem ali ao lado da rodoviária para onde os pombos seguiram, discreta e aconchegante, havia uma pousada com o letreiro:
"TEMOS VAGA”
Segundo dia
Após tudo dar certo e ser muito bem acolhido por uma senhorinha, Cidinha, a dona do lugar. Guilherme Alcântara acorda muito disposto e renovado, pronto para o primeiro dia oficial da conferência, com palestra e lançamentos de livros especializados para o tema. Saindo em direção à cozinha da pousada onde servem o café da manhã, o moço se pega reclamando de gastar tanto com motoristas de carro para poder se locomover na cidade quando é confortado por Dona Cidinha.
- Por que não vai de circular? Muito estudante faz isso por aqui, acredito que vai dar pra dar uma economizada.
- Sabe o que é Dona Cidinha, tenho um tiquinho de medo, não conheço a cidade e também não pesquisei nada sobre os pontos. Será que é longe? Tenho medo de me perder.
- Que nada, querido, é bem aqui do lado, todo mundo acha, é bem ali na…- a senhora é interrompida.
- Deixa eu adivinhar - o moço diz com humor - é na rodoviária?
Ambos riem.
- Sim, sim, bem ali em baixo, nas coberturas azuis bem chamativas. Com repentina coragem, o moço segue caminho para pegar o ônibus com o letreiro “64 - UFSCar”. Paga para o motorista e logo avista um lugar ainda disponível, quando de repente, o ônibus para e chacoalha. Despreparado para o brusco movimento, Guilherme literalmente voa para a poltrona, quase caindo em cima de uma mulher de cabelo rosa cacheado sentada do lado da janela. - Ô moça, me desculpa, não foi de propósito.
- Imagina, sei muito bem que essas coisas acontecem - ela diz rindo.
- Coitádocê, por sorte não caí bem em cima. Está indo pra Federal também?
- Sim, participar do congresso, tá sabendo?
- Que sorte, eu também! E vim de Minas justamente por isso.
- Sou Agatha! Vamos curtir juntos, aproveito e te guio por lá porque o lugar é enorme.
Após as apresentações ambos seguiram para um dia de muitas emoções, descobertas e novidades.
Bem exposto no centro de todas as palestras e festividades do congresso aparece um grande mapa de toda a cidade de São Carlos, com muitas cores bonitas e vibrantes. Ao lado do mapa, uma lista de sugestões de lugares interessantes para se visitar. Entre elas algumas que já havia visto enquanto passava, como o cemitério, a Universidade na qual estava no momento, o Parque ecológico e outros. Entretanto, o que mais chamou sua atenção era que bem no meio do mapa, entre tantas opções, estava em tamanho maior e em cor mais vibrante que as demais:
“RODOVIÁRIA”
Depois de muito conversar, por volta das 16h, surge uma ideia.
- E agora? Você tem alguma coisa marcada? Fiquei inspirada por esse mapa e as ideias com ele e queria te propor: topa vir conhecer um pouquinho da cidade comigo? - Agatha pergunta animada
- Sim, claro, aonde vai me levar? - responde, sempre disposto a Flanar por aí.
- Os lugares que vou te levar serão surpresa, para que sua experiência seja única. Queria aproveitar que as palestras de hoje terminaram mais cedo e queria te levar em um lugar conhecido daqui, a Catedral. - explica a são-carlense empolgada.
- Meio paia te falar isso agora que me convidou, mas é que eu não sou religioso ou Católico.
- Relaxa, também não é minha religião, Olorum e meus Orixás estão sempre comigo. Você vai gostar! É um lugar bonito, com muitas curiosidades. No caminho para a Catedral de São Carlos, Borromeu, observando as ruas e as pessoas, ele decide emitir o que pensa.
- As paredes dos prédios por aqui são bem limpas, né? Sem pichação. E também nunca tinha visto um cemitério dentro da cidade. Geralmente é mais afastado, mas aqui está literalmente no meio da passagem para muitos lugares!
Rindo, a estudante responde:
- Sabe que cemitério é uma coisa que todos falam, quem acha normal é são-carlense mesmo.
- Fico um pouco triste de visitar, sentir e vivenciar todos os pensamentos sobre a vida e o que vem após ela, mas é muito interessante o da cidade. Quantas histórias devem ter!
Ao chegar na Catedral da cidade, local bastante frequentado, o mineiro fica encantado com a construção.
- Aqui é muito lindo mesmo, e tem pessoas de todos os tipos. - Disse para a amiga que havia feito no mesmo dia.
- Sim, esconde mistérios e segredos que nem todos conhecem. Olha bem aqui, consegue identificar? - Perguntou apontando para uma das colunas. Surpreso e um pouco confuso com a visão, disse.
- São pegadas?
- Isso mesmo, acertou. Quando foi construída, usaram materiais fossilizados na estrutura, quer gostem ou não, estará sempre eternizado aqui. Andando e conhecendo todo o local, os dois seguem caminho até a Praça XV, outro lugar na qual Agatha Maria achou que o mineiro iria curtir.
- Não importa a cidade ou até mesmo país, qualquer praça é proveitosa - disse o visitante estendendo os braços, recebendo a energia.
- Pode ter certeza que melhora, a Livraria EDUFSCar, da nossa universidade, costuma fazer algumas feiras do livro por aqui, acaba reunindo inúmeras famílias - diz e recebe um aceno entusiasmado.
Andando um pouco mais, chegam a passar por outra praça, Praça dos Pombos, não muito agradável e aparentemente abandonada, presenciam uma briga com algumas pessoas.
- Vamos picar a mula daqui, eu tô um tiquim assustado com essa briga sem sentido ali na frente. Tem base um absurdo desse?
E com isso ambos retornam ao local onde se conheceram: a rodoviária.
Terceiro dia
Disposto e ainda mais ansioso para o que o novo dia o aguarda, Guilherme toma rápido seu café da manhã e corre para encontrar Agatha, a fim de seguir caminho para a Universidade. Conhece muitas pessoas de Estados diferentes, compartilha gírias e vivências assim como aprende com as outras.
Novamente era dia de terminar as exposições ainda cedo, talvez flanar pela cidade sozinho? Mas por onde?
- Então amigo, estou indo, tenho consulta marcada na Santa Casa e preciso ir para o ponto de ônibus.
- Entendi, e é longe daqui?
- Até que não, quer vir e esperar terminar? Podemos fazer alguma coisa lá em casa, o pessoal da república estava combinando de se unir e jogar jogos.
- Sim, pode ser, vai ser divertido.
- Aproveito para dizer que amanhã não vou ficar até o fim das apresentações, vou sair mais cedo porque vou ao Barracão para uma sessão presidida pelo meu pai.
- Então vamos nos despedir mais cedo, parto logo que acabar o congresso - disse com pesar por ter que ir embora.
- NÃO! - Exclamou a cacheada - Pode trocar seu ônibus para outro dia, tem mais um lugar que você precisa conhecer e temos que ir em horário de sol, sábado é perfeito.
- Não sei se isso vai ser possível. - respondeu pensativo
Já aguardando fora do prédio em que Agatha teria sua consulta, Guilherme resolve dar uma volta pelo bairro Vila Pureza e acaba constatando em suas andanças que aquele era um bairro familiar, que preza pela segurança, com casas bonitas e bem cuidadas, mas, por outro lado, podia soar um pouco intimidador por conta de todas as câmeras e cercas elétricas, além dos avisos de cuidado que haviam por ali.
Após andar pelo caminho de volta, ele avista de longe sua amiga e os dois partem para a república mista na qual a garota mora, e isso termina por ser onde? Isso mesmo, de volta para a rodoviária. Nos arredores, o estudante percebe que existem muitas repúblicas lotadas de diversidade, acalento e amor.
Quando entraram na casa, foram recebidos com muito entusiasmo, e já avisados que deveriam convencer Guilherme a ficar na cidade pelo menos até sábado à tarde. Depois de algumas partidas de jogos de tabuleiro e muita insistência, ele entra no site pelo celular e imediatamente solicita a troca de sua passagem e, com muito sucesso, consegue mudá-la. Estava curioso sobre esse lugar tão gostoso na qual falavam.
Quarto dia
No último dia do congresso, um filme dos últimos dias passava por sua cabeça, ele nem imaginava quantas emoções esses dias poderiam trazer, nem em todas as amizades que ele conquistaria. Aproveitou sua última oportunidade na Universidade para comprar de recordação uma caneca vermelha com a logo da UFSCar. Seu dia foi tranquilo, sem nenhum empecilho. Ele voltou para a pousada para pegar suas coisas e se despedir da simpática dona que nesses poucos dias o tratou como filho.
Seguindo para o lar na república de seus novos amigos, onde ficaria em sua última noite, se deparou com todos arrumados como se o tivessem esperando.
- Larga tudo e se arrume porque hoje é dia de… - suspense na fala do colega - CINEMA.
Aaaaaah, o interior! O cinema da cidade, Cine São Carlos, é localizado próximo às praças da cidade , um lugar aconchegante que com certeza ficará guardado na memória por muito tempo. Após a sessão, voltaram para casa e encerraram o dia.
- Nó Sinhora, vou sentir falta desse lugar - sussurrou o mineiro emocionado.
Quinto e último dia
Acordou mais tarde para seu último dia conhecendo e flanando pela cidade. Guilherme, apesar de estar triste por ter que ir embora, estava agitado para visitar o último lugar da cidade que Agatha propôs. Seguindo em direção à cozinha, cumprimentou a todos, sendo recebido com carinho.
- Bom dia, meu bom Mineiro. Pronto para o último lugar do nosso breve itinerário? Estou arrumando umas coisas para fazer um piquenique na hora do almoço e depois podemos nos aventurar mais pelo lugar - Disse sua grande amiga.
- Bom dia, estou sempre preparado para me aventurar por essa cidade, já estou com saudades - disse um tanto tristonho - mas vamos aproveitar nossas últimas horas e esse banquete.
Os dois partiram em direção ao carro que Agatha havia pego emprestado e o carregou com os lanches para o passeio e também com a bagagem do mineiro, uma vez que partiria logo após o passeio no Parque do Bicão, o último lugar escolhido para visitar.
- Eu não tenho palavras, que lugar lindo - enfatizou o moço admirado. O lugar era enorme, rodeado de árvores e flores, com vários pássaros passando e os encantando com seus cantos. Um lugar que conta histórias, carrega em sua arquitetura memórias de tempos e pessoas que por ali passaram.
Continuando a caminhada por toda sua extensão, avistaram uma cena linda e emocionante: uma mulher de cabelo longo carregando em seus braços um belo bebê, e logo atrás outra a seguia enquanto tirava fotos naquele belo cenário. Guilherme e Agatha Maria se entreolharam e compartilharam do mesmo pensamento “Que bela cena, como gostaria de ver essas fotos!”
E foi assim que o tempo acabou, os dois seguiram para o real último local importante a ser visitado, lugar que recebeu tantas visitas desse mineiro aventureiro. Agatha o deixou na frente da Rodoviária e seguiu caminho após tantas despedidas. Entrando cada vez mais para o interior da instalação, em direção ao ônibus, Guilherme se depara com uma situação quase inacreditável, um garoto dançando no meio de todos, sem se importar com quem o observava e apenas curtindo a música.
Uma música na qual ele passou a compartilhar também, o que era engraçado porque o menino na qual dançava estava usando fones de ouvido! “Por que continuo a ouvir uma música?” Esta, que aos poucos, passou a ser mais alta e real. Quando começou a enxergar uma fresta de luz clara bem forte e abriu os olhos, reparou que a música vinha de seu despertador.
Guilherme, levanta em disparada para a mesa onde tinha seu calendário e marcado em vermelho estava escrito: dia de ir para o Congresso Flanar.
A natureza do tempo
Conto
Por: Clariane Molina de Lima
O tempo…um elemento que flutua sobre nós, impondo sua presença de forma autoritária e amedrontadora, mas ao mesmo tempo, revelando sua natureza poética e inspiradora, é o condutor que impulsiona a busca por conquistas e sonhos permitindo vivenciar memórias marcantes e desejar por um futuro feliz.
Quantas vezes, em reflexões silenciosas, já nos deparamos com a imensidão desse conceito? O tempo é um tema universal que toca centenas de vidas, cada uma experimentando seus altos e baixos, tendo momentos de apreciação pelo passar lento do tempo, como uma suave brisa, e momentos em que desejamos que o tempo seja mais generoso, estendendo além de sua natureza efêmera.
O tempo…elegante e discreto, desliza diante de mim com uma velocidade e uma sutileza notáveis, inatingíveis, é um fluxo contínuo, indo e vindo, me fazendo questionar: ficarei no seu rastro? Se ficar, onde será esse ponto de permanência? As incertezas se acumulam e a resposta parece escapar por entre meus dedos.
Ah, o tempo…com sua dança incessante, me deixa inquieta, enquanto sua passagem é admirável, também é misteriosa e inescrutável, em seu curso, somos levados a ponderar sobre nosso lugar nesse fluxo temporal e, entre as incertezas do futuro, uma constante permanece: o tempo vem, o tempo vai…
e eu? irei ficar?
se ficar, onde ficarei?
não sei…não sei
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No budismo, dizem que o tempo é tipo uma ilusão, uma coisa que nos confunde, mas eu vejo o tempo mais como um rio que não para de correr, sempre seguindo em frente que vai nos levando para o futuro, sem nem dar uma olhada para trás, mostrando que a vida é cheia desses momentos que passam rápido.
A noite já chegou, e a chuva está caindo, me pego pensando se hoje vivi de verdade ou apenas existi, essa conversa meio existencialista é um caminho meio deprimente, mas é assim que a chuva me deixa, meio introspectiva, vou tentar não ficar nesse clima, mas não posso prometer nada. Só consigo controlar o agora e, para ser sincera, nem disso tenho certeza.
II
O dia amanhece e eu decido fazer uma visitinha à farmácia, só para passear mesmo, dar uma olhada. Adentro o espaço, e me deparo com o corredor das fraldas. Uma surpresa me atinge: uau, como são caras! Uma fortuna!
Continuo minha jornada pelos corredores e, inevitavelmente, paro diante dos shampoos. Não consigo resistir à tentação de experimentar os aromas um por um. Um em particular, com cheiro de frutas, desperta uma vontade engraçada de colocar o dedo no pote e experimentar. Minha mãe certamente diria "está com verme". Poxa! Só por causa de uma inclinação peculiar por aromas?
Ao observar os shampoos, percebo uma organização interessante. Os mais caros lá no alto, os baratinhos lá embaixo, e os intermediários bem na altura dos olhos, como se estivessem clamando pela nossa atenção. Uma estratégia de marketing que, não posso evitar, me faz pensar se não fazem o mesmo conosco. Isso me deixa desconfortável.
Passo minutos ali, olhando e ponderando. Mas, como de costume, acabo optando por levar um sabonete. Chego ao caixa, e lá estão elas, as perguntas padrão, não importa onde você esteja: "CPF na nota paulista?" - "Quer sua notinha?"
Recentemente, descobri que o termo "nota paulista" só é usado assim em São Paulo, que o nome genérico seria "cupom fiscal" e em cada estado recebe um nome. Uma informação que deveria ser óbvia, mas eu nunca havia percebido até ler em algum lugar na vastidão da internet.
Ao sair da farmácia, me deparo com a Avenida São Carlos, as pessoas estão indo e vindo sem parar, numa dança ensaiada, o som dos passos ecoa pelas ruas, e o ritmo da cidade é como uma música que flutua, os prédios altos se erguem em direção ao céu, os comércios estão lotados, o trânsito é intenso, mas as pessoas seguem em frente sem se importar com o seu redor.
Observando as pessoas, duas figuras saltam aos meus olhos, elas se movem rapidamente entre a multidão, caminham de mãos dadas pela avenida, mas não trocam nenhuma palavra, carinho ou até mesmo olhar, cada um preocupado em falar no celular.
Mas, é assim como as pessoas são, elas vão e vêm, como notas em uma melodia, e a cidade é a partitura onde elas se encontram.
Me pego parada, estarrecida, olhando, como se estivesse vendo através de uma vitrine, nela, os carros passam tão depressa, de forma tão veloz que fazem os pedestres esperar minutos antes de atravessar a rua.
Decido enfrentar a multidão de lata, e ao atravessar…me deparo com ele:
o cemitério
Admiro o imenso espaço que ele ocupa na cidade e fico olhando as paredes lisas, vazias - sabia que aqui antes tinham várias palavras soltas, frases e desenhos? Mas por causa do feriado de Finados pintaram e fingiram que se importam com os mortos ou será que é apenas porque as eleições estão chegando e estão fingindo que se importam com os vivos que vão visitar os mortos…
Atravesso a rua, caminho ao lado do cemitério, observando a avenida. As pessoas passam rapidamente, ocupadas em seus pensamentos, envolvidas em suas tarefas diárias. Estão presas em seus pensamentos inacabados.
A vida moderna é uma corrida contra o relógio, com as pessoas sempre correndo, sem tempo para reflexão, ao lado do cemitério, a pressa das pessoas e sua distração com o tempo se tornam tragicamente cômicas, uma piada de mau gosto.
Observo os carros na rua, voando ansiosos para chegar aos seus destinos, alguns entram na cidade, outros saem. Para onde será que estão indo?
Será que vão encontrar a pessoa amada, fazer uma surpresa ou talvez visitar um parente que há tanto não vê, e a saudade explode, arde, lateja em seu peito?
Em minha mente, a cena romântica se desenha em um lindo romance medieval: Ele, um valente cavaleiro, afastado de sua família por deveres honrosos; ela, uma dedicada trabalhadora, impedida de ir ao encontro de seu amado, diariamente, expressam juras de amor, palavras que alimentam a chama apaixonada de seus vulneráveis e já entregues corações, imersos em sonhos, anseiam pelo reencontro tão aguardado, onde o amor florescerá em meio às pedras do castelo e aos suspiros do vento da Idade Média.– talvez, o moço em vez de um cavalo e ferraduras, possua uma lataria com 4 rodas.
Mas e se não forem por motivos felizes?... Quero nem pensar nisso, disse que tentaria não deixar esse momento deprimente, bem, estou cumprindo minha palavra — por enquanto.
Para ser realista, acho que muitos desejam apenas o retorno ao lar: banho, janta e um breve descanso antes de recomeçar amanhã. Parece triste, não é? Pensando agora, essa rotina acalenta ou devora?
A ideia do ciclo, em viver repetidamente, presos em rotinas, crenças, conceitos, verdades. Isso traz felicidade ou angústia? A rotina, até certo ponto, oferece segurança, mas também nos aprisiona em uma existência monótona e às vezes até acho que é sem sentido.
A rotina nos faz esquecer muitas vezes do quão única é a jornada da vida e de como cada momento é precioso e valioso, faz a gente sentir que a vida é uma sucessão de dias iguais, sem significado ou propósito.
Por algum motivo, me sinto impelida a ir até o ponto de ônibus, vejo que tem um lugarzinho sobrando, sento nele, enquanto estou lá passam vários ônibus lotados, repleto de pessoas, silenciosas, inertes em seus pequeniníssimos espaços, como é divertido pensar, todos tão pertos uns dos outros mas ao mesmo tempo ― tão distantes, algumas delas olham seus celulares, outras escutam suas músicas…um mundo em que a tecnologia nos conecta, mas também nos separa.
Por um instante, volto abruptamente dos meus pensamentos para o ponto de ônibus, me sinto tão sozinha e ao mesmo tão acompanhada, e olhando essa gente toda, minha mente
vai tão longe
tão longe
Penso que cada um desses indivíduos possuem uma vida
possuem seus amores
seus desafetos
suas preocupações
suas dores
seus momentos de tristeza
seus momentos de felicidades
Relembro de algo que muitas vezes por estar tão presa em mim mesma acabo esquecendo, somos diferentes e, ao mesmo tempo, me identifico. Apesar das semelhanças, divergimos em aparência, habilidades e crenças, mas nos conectamos em sentimentos, emoções e necessidades.
Olho para meu relógio e me surpreendo com o horário e volto a caminhar, em minha jornada, vejo aqueles que possuem condição financeira melhor do que eu, com carros que valem mais do que eu ganho o ano todo.
Já em outro ponto, sou confrontada visualmente por um desafortunado que não tem nem o que comer, o morador de rua está sentado na calçada olhando para o nada, o observo de longe, seus pés estão sujos, acho que podem estar cansados, suas roupas estão rasgadas, imagino que tenha fome e sede, mas não tem dinheiro para comprar comida ou água, ele fecha os olhos e respira fundo, tentando encontrar um pouco de paz em meio ao caos da cidade, talvez pense em sua vida, em como tudo deu errado, em como ele acabou na rua, levo um susto, ele se levanta abruptamente e começa a caminhar pela cidade, olhando para as luzes brilhantes e as pessoas apressadas. Eu jogo energia para o universo e desejo genuinamente que ele tenha esperanças e encontre dias mais vibrantes.
Realmente… a cidade é um lugar de
contrastes…
III
Caminho, vislumbro o céu, sua tonalidade azul, uma beleza incontestável, mesmo que cientistas possam discordar dessa afirmação porque cor do céu é, na verdade, resultado da dispersão da luz solar na atmosfera, quando a luz do sol passa pela atmosfera da Terra, as moléculas de ar dispersam as diferentes cores de luz em diferentes graus, a luz azul é dispersa mais do que as outras cores, o que faz com que o céu pareça azul para nós mas, mesmo assim, não deixo de achar esse azul celeste belíssimo, contemplo os pássaros e as flores no caminho, elementos que deixam minha jornada ainda mais encantadora.
E então, eu não apenas olho, eu o exergo.
O cemitério do outro lado da avenida… e reflito que desde sempre, o cemitério exerceu em mim uma aura mística... não sei exatamente o porquê, talvez tenha sido a imponência dos muros que o cercam, ou a sensação de que, por trás daqueles muros, repousam um universo de histórias silenciadas.
A primeira vez que me vi diante da imensidão tranquila daquele lugar foi na infância, o caminho que levava ao cemitério parecia repleta de segredos sussurrados pelas folhas das árvores que a ladeavam. Ao cruzar os portões, experimentei uma mescla de respeito e curiosidade que se tornaria uma constante na minha vida.
Os caminhos precisos, ladeados por lápides alinhadas como capítulos de uma narrativa coletiva, se tornaram admirados, e muitas histórias ganharam vida por causa da minha imaginação fertil. Sob a luz da manhã de minha infância, o cemitério emanava uma tranquilidade que, de alguma forma, diminuia minhas inquietações, cada sepultura se revelava como uma pequena biografia esculpida em pedra, provocando minha imaginação a desvendar as vidas por trás daqueles breves epitáfios.
A luz suave da manhã dava uma melancolia discreta ao ambiente, transformando os corredores silenciosos em trilhas de contemplação, já as árvores se transformavam em testemunhas silenciosas do tempo, pareciam sussurrar histórias a cada balançar de folhas, criando um elo entre o presente e um passado que se desenrolava sob seus ramos.
Não havia magia no sentido literal, mas o cemitério, com sua simplicidade e imortalidade peculiar, se tornou uma presença constante em minha vida. Era um lugar de reflexão, onde o respeito pelos que partiram ecoava nos corredores de pedra. Cada visita se tornava uma jornada pelo meu próprio entendimento da vida e da morte.
Diante das lápides que contam histórias interrompidas, reflito sobre o tempo que nos escapa. Na filosofia, o cemitério se torna um lembrete eloquente da efemeridade da vida, onde cada lápide é um capítulo encerrado. Desde os pensadores antigos até os contemporâneos, a morte é considerada não apenas como um fim inevitável, mas também como um catalisador para questionamentos profundos sobre o propósito da existência.
No início da tarde, me aventuro pelas ruas e travessas do cemitério Nossa Senhora do Carmo, ao adentrar, me deparo com árvores centenárias, altas e robustas, pintadas com um verde encantador, são grandiosas, e diante delas, sinto minha própria pequenez, com meus modestos vinte e cinco anos, sou apenas uma observadora frágil, tentando desbravar a jornada da vida.
A cada passo, a energia mágica do lugar adentra cada pedacinho do meu ser e sou tomada por uma vontade avassaladora de desvendar o que há em cada ruazinha daquele enigmático lugar.
Entre as árvores, na Rua 6, sigo em passos lentos, absorvendo todas as cores ao meu redor. Observo e aprecio as estruturas arquitetônicas, dedicando olhares afetuosos às recordações preservadas nos epitáfios sobre o mármore gelado, muitas vezes quase esquecidos, nessa atmosfera de solidão, meu coração se envolve por uma saudade, que para ser sincera, nem me pertence.
Caminhando pelas ruas desse lugar impiedoso e majestoso que será nosso destino, testemunho amores, alegrias e histórias que por mim sempre serão desconhecidas.
Me surpreendo ao ler "Suas asas estavam prontas, porém nossos corações não...", e uma lágrima desce em minha face. Meu coração sente a angústia de não poder mais abraçar um ente querido, a amargura dos "eu te amo" não proferidos, o latejar dos braços estendidos em forma de abraço e nunca mais retribuídos. Tenho certeza de que a saudade é uma dor inesquecível.
Inspiro profundamente e retomo minha jornada, maravilhada pela exuberância que se revela em meio a um ambiente cercado pela morte, ao longe, contemplo uma árvore emergindo de um túmulo, resplandecente, e anseio me transformar, um dia, em uma majestosa árvore, integrando à beleza eterna que habita este lugar.
Fico parada, olhando o meu entorno e admiro a dança graciosa das borboletas, testemunho o empenho das abelhas em seu voo frenético, e contemplo as flores que exibem uma paleta de cores vibrantes, realçando a vida ao seu redor com uma beleza tão simples e aconchegante. .
Diante do mausoléu de uma determinada família, decido descansar meu corpo, mas não esperava que minha mente encontraria também um repouso tão profundo, imersa em um silêncio sereno. Por alguns instantes, esqueço completamente da agitação lá fora.
E nesse momento, minha mente levanta voo, alça os céus da contemplação, voando, voando, pairando como as pombinhas que, até então, compartilhavam esse espaço de tranquilidade.
Meus pensamentos flutuam como sementes de dente de leão, não fixam residência em lugar algum, perambulam de um lado para o outro, sem estabelecer uma morada definitiva. Minha mente acalma, meu coração se alegra, e minha alma se despe de todas as preocupações que estão além dos portões deste lugar.
O excesso de sentimentos, pensamentos, qual o propósito? Por que me deter tanto em questões sobre as quais não tenho controle? Por que me prender a algo que não resultará em nada positivo? Cansei dessa patifaria. Então,aqui neste cemitério, eu fiz uma escolha.
eu quero é viver.
sim, isso mesmo
EU QUERO VIVER.
pois, é!
EU QUERO VIVER COM LETRAS MAIÚSCULAS — com letras maiúsculas, para o mundo entender.
Quero declarar ao universo: "Eu quero é VIVER, com fervor."
Quero amar, quero ser amada, quero brigar e me reconciliar, quero gritar, quero espernear, quero sorrir, quero gargalhar, quero correr, quero andar, quero dormir, quero acordar,
quero..
quero…
quero..
Lágrimas inundam meus olhos, alegria pulsa no coração,
A vontade de abraçar a vida, uma explosão.
No devaneio, o alarme estridente do celular toca, bruscamente trazendo a realidade,
– Pegar o ônibus, aula esperando, que ansiedade!
– Meu Deus, olha a hora!
– Estou atrasada, é verdade.
Corro, passos apressados, vida em velocidade.
Prometo
um dia eu volto,
e fico.
A Catedral de São Carlos Borromeu e sinais despercebidos
Artigo
Por: Raul Yamada
Em algum lugar entre o medo e o preconceito
Conto
Por: Lucas Augusto Contessotto, Nicole Ferrari Dias e Rodrigo do Prado Pazzini.
Na cidade, onde o concreto domina e os prédios buscam tocar o céu, existem espaços que parecem resistir ao tempo, como ilhas em meio ao mar de asfalto: as praças. Esses espaços aparentemente acolhedores, em meio às árvores e bancos de concreto, existem traços de histórias nem sempre visíveis aos olhos desatentos que se desenrolam, revelando uma realidade social complexa e muitas vezes dolorosa. Numa tarde ensolarada de segunda-feira, a Praça dos Pombos revelava cenas distintas e perspectivas contrastantes. Enquanto alguns moradores de rua buscavam refúgio do sol escaldante, um personagem peculiar se destacava, indiferente ao calor e aos olhares desconfiados, entregue a uma garrafa de Corote e aos versos do hino do Flamengo.
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No ponto de ônibus, três pessoas observavam a cena e compartilhavam o receio de frequentar a praça, citando o temor de possíveis assaltos protagonizados pelos "cracudos". Um senhor idoso, movido pela indignação, expressou o desejo de resolver a situação com álcool e isqueiro. Por outro lado, na Praça da XV, a falta de pessoas em situação de rua se destacava enquanto uma senhora passeava com seus cachorros. Ao ser questionada sobre a presença dessas pessoas na praça, ela expressou sua opinião de que o local não é apropriado para "esse tipo de gente". Para ela, a praça é um espaço familiar, onde costuma levar seus netos nos finais de semana. E se caso algum "cracudo" ou se frequentar, ela garante que serão prontamente “botados pra correr”.
É fácil esquecer que, por trás de cada rosto que carrega as marcas da vida nas ruas, há uma pessoa com sonhos, decepções e uma história de vida marcada por adversidades que muitos de nós nunca enfrentamos. As praças, que deveriam ser espaços de convivência e inclusão, muitas vezes refletem a dura realidade de uma sociedade que ainda precisa aprender a acolher. Assim, entre temores de assaltos e a defesa de espaços familiares, as praças da cidade pulsam com as diferentes perspectivas e desafios enfrentados por aqueles que as frequentam, revelando uma teia complexa de relações sociais. Enquanto o sol se põe e as luzes da cidade se acendem, as praças permanecem como testemunhas das complexidades humanas. As praças, afinal, são mais do que um espaço público, são um microcosmo da vida urbana, onde o desafio é enxergar além das aparências.
A Praça
No meio da correria, sou sombra e calmaria
Pro apressado, sou passagem
Ponto de referência na cidade
No meio de tudo, sou respiro
Para alguns, sou destino
Sou festa, encontro de amigos
Tanto combinado quanto por acaso
No meio da noite, posso ser perigo
Mesmo que muitos evitem, para outros sou abrigo
Ilha no meio do mar de concreto
Não sou sombra apenas para alguns, mas pra quem passar
Nos arredores isso pode incomodar
Mas nunca fui singular, sou o que cada um precisar
Pureza?
Poemas visuais que captam os signos do medo, da busca de segurança.
Imagens e palavras tecidas em formato verbo-visual resultam das andanças
de Vitória Castilho pelo espaço urbano.
Catafolhas
E-book
Por: Noá Trevisan
Catafolhas, relato poético e fotográfico da vivência de Noá Trevisan no candomblé: aprender a construir um eu que precisa do coletivo.
Umbanda
Por: Beatriz Gomes da Silva
A umbanda seus ritos e costumes são registrados num vídeo documentário com depoimento do Pai de Santo, Diego de Oxaguian, produzido e editado por Beatriz Gomes da Silva.
Penumbra
Por: Gio C. Silva, Isabela Freitas e Maga Gobb.
Penumbra, substantivo feminino, ponto indefinível entre a luz e a sombra. Um cinema de rua em São Carlos inspirou o vídeo poema de Gio C. Silva, Isabela Freitas e Maga Gobb.
A vida em república: a dinâmica linguística e o desenvolvimento pessoal dos estudantes
Ensaio
Por: Johann Mattias Faigle
O ambiente de uma república oferece uma variedade de oportunidades unidades para o desenvolvimento pessoal, influenciando positivamente aspectos como habilidades de comunicação, resiliência, adaptação e compreensão interpessoal. Neste texto, será apresentado o espaço de repúblicas universitárias, seguido de uma entrevista feita com os moradores da República Malibu de São Carlos, bem como com Neuza Ramos, empregada da casa. Finalmente, uma discussão sobre o que foi encontrado é apresentada, com foco nas interações dialógicas do ambiente.
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1. Introdução
Na cidade de São Carlos, no interior do estado de São Paulo, um contingente de aproximadamente 30 mil discentes compõe a população acadêmica, com a dominante parcela de cerca de 25 mil pertencentes à Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e os remanescentes da Universidade de São Paulo (USP). Dentro desse contexto, observa-se a notável influência exercida pelas repúblicas universitárias, um fenômeno recorrente em muitas localidades. É comum que a grande maioria das festas que ocorrem durante o ano sejam organizadas por repúblicas, por exemplo.
Caracteriza-se uma república como uma entidade distinta de uma residência compartilhada por amigos que acabaram por frequentar o mesmo ambiente acadêmico e decidiram compartilhar uma casa. Em muitos aspectos, uma república opera de maneira semelhante a uma instituição ou até mesmo a uma empresa. Mesmo que os habitantes se tornem, ou já sejam, amigos que dividem um domicílio, uma república deve manter sua integridade ao longo do tempo, mesmo quando os membros iniciais não residem mais na casa. Vale ressaltar que uma república não tem sua continuidade refém da permanência em um mesmo local, sendo relativamente frequente o deslocamento ou realocação de repúblicas para novas residências. A analogia com uma empresa se justifica da seguinte forma:
1. Gestão de Pessoas: Tanto uma república quanto uma empresa requerem uma gestão eficiente. Nas repúblicas, os moradores se dividem em cargos de responsabilidade conforme necessário. Na maior parte dos casos, um veterano assume o papel de orientador para um bixo(calouro) em uma ou mais funções necessárias para o funcionamento da casa, desde as finanças até a limpeza de uma piscina ou cuidado com os animais de estimação. A perpetuação dessa dinâmica garante que as práticas necessárias para manutenção da residência sejam passadas adiante.
2. Administração Financeira: Ambas as entidades precisam adotar práticas financeiras sólidas para garantir sua continuidade. Uma república deve possuir o discernimento necessário, por exemplo, para determinar a quantidade de membros essencial a fim de preservar a acessibilidade dos custos, e, de preferência, reservar uma quantia significativa para a contingência de imprevistos. Além disso, é necessário um planejamento de longo prazo que antecipe os períodos de carência de membros, decorrentes da formatura destes, meses antes da chegada de novos graduandos.
3. Políticas Internas: Tanto as empresas quanto as repúblicas estabelecem regulamentações e políticas internas para manter a ordem. No caso de uma república, não costuma ocorrer de maneira formal, mas a relação ainda é relevante.
4. Cultura e Valores: Tradições, valores compartilhados e rituais que unem os membros em torno de um propósito ou identidade comuns são outra característica semelhante dos dois ambientes. Porém, uma república costuma ser muito mais flexível, apresentando uma evolução natural de sua cultura, afetada por novos moradores.
Não é possível dizer com total precisão quantas repúblicas existem em São Carlos no momento. Na ferramenta de busca Google são encontradas 87 em primeira instância, porém, há que se considerar que novas repúblicas surgem com regularidade, ao passo que outras cessam suas atividades. Assim, os resultados podem dispor erroneamente repúblicas que já não poderiam ser encontradas, ou não estar adequadamente atualizado. O número de pessoas é um elemento variável entre as casas, mas encontrar repúblicas que abriguem menos de 6 a 8 habitantes ou que ultrapassem 25 é difícil.
As repúblicas geralmente abrigam jovens universitários, com idades que variam entre 18 e 30 anos. Esses estudantes vêm de diferentes partes do Brasil e, em alguns casos, do exterior. Ademais, muitos estudantes que vivem nessas repúblicas estão experimentando a vida longe de suas famílias pela primeira vez, o que os torna parte integrante da dinâmica social da cidade.
As repúblicas costumam ser divididas em masculinas e femininas, com poucas exceções que optam por uma convivência mista. Um evento muito comum é a integração entre repúblicas, onde os integrantes de duas ou mais repúblicas se propõe a se reunir em uma das casas, se conhecer e dividir um momento de lazer. Esta iniciativa desempenha um papel de grande relevância na preservação da saúde e vitalidade das repúblicas como instituições, além de constituir uma excelente oportunidade para que seus ocupantes ampliem seus círculos sociais. Outra situação, muitas vezes decorrida de uma integração bem-sucedido é o que se chama de “intercâmbio”, onde os mais novos (bixos/bixetes) de duas repúblicas trocam de casa, passando alguns dias vivendo na outra república.
2. Conversas com Integrantes da Rep. Malibu de São Carlos
2.1 Relatos de Moradores da República Malibu
Foram apresentadas sete perguntas para os moradores da República Malibu. São elas: 1) A quanto tempo você mora (ou morou) nessa república?; 2) Como e em qual aspecto da vida morar aqui te afetou?; 3) Como são as conversas do dia a dia?; 4) O que você precisou mudar para se adaptar à república?; 5) Há algo que acredite que você tenha mudado na república? 6) Com qual frequência e em qual nível você é desafiado em suas ideias? e 7)Você tem alguma ocupação profissional? Como morar em república te ajudou com isso?.
Não serão apresentadas aqui transcrições das conversas, tampouco todas as respostas em sua integridade. Discutiremos as respostas destacando os padrões mais recorrentes, apontando as diferenças quando relevante e usando partes das respostas em si para gerar discussão sobre o tema. Além dos moradores, Neuza Ramos, empregada da casa, foi também entrevistada sobre sua experiência em uma conversa mais aberta. Finalmente, será discutido o que essas respostas podem indicar sobre o espaço de república.
O propósito dessas perguntas é fornecer um vislumbre sobre a relação indivíduo-instituição criada no ambiente de república universitária, a fim de analisar os impactos do microcosmo social que se forma na casa.
São reconhecidas as limitações da pesquisa, a começar por sua metodologia, que se baseia em coleta de dados por questionário, método que é notoriamente pouco confiável, como exemplificado pela escolha de economistas de se basear em preferência revelada. Ademais, a amostra é pequena demais para que se possa tirar quaisquer conclusões definitivas. Assim, o propósito se limita à uma apresentação informal de curiosidades sobre o espaço discursivo das repúblicas.
Agora, com exceção da primeira pergunta, serão mencionadas as respostas mais frequentes e relevantes de cada pergunta. A primeira pergunta será ignorada por agora, basta saber que os moradores entrevistados variavam de 1 a 6 anos de tempo de república, e que as respostas eram mais complexas e mais facilmente elaboradas no caso dos mais velhos.
2) Nas respostas à segunda pergunta, destacam-se comentários sobre a melhoria na comunicação, aumento da disposição para aceitar novas responsabilidades e desenvolvimento do senso coletivo. Um dos moradores mencionou também sua habilidade em dialogar com grupos diversos, adaptando seu discurso e comportamento conforme necessário, competência atribuída ao convívio na república.
3) Ao discutirem as interações cotidianas, as respostas que ressaltam a variedade e “fluidez de tópicos” (a facilidade com a qual se passa de um tópico banal para um aprofundado) das conversas são unânimes, assim como os comentários sobre a diversidade de perspectivas em discussões mais sérias.
4) As respostas em relação às mudanças necessárias para se adaptar à república foram semelhantes às da segunda pergunta, com os moradores mencionando aspectos como a prender a fazer concessões, fortalecimento do senso coletivo e aquisição de responsabilidade, entre outros.
5) Poucos moradores souberam responder o que tinham mudado na república, mas a frequência de uma resposta mais elaborada foi maior em moradores mais velhos (em tempo de república), com menções que iam de coisas gerais como “Trazer mais seriedade para algumas discussões em reuniões” até mais específicas sobre o funcionamento de funções na casa.
6) Todos os moradores relataram que suas ideias são desafiadas no mínimo com uma frequência considerável, com a maioria mencionando que acontece com muita frequência. Um morador especificamente afirmou que “muito mais do que na faculdade”. Outros comentaram o quanto isso os ajuda a ser capazes de considerar pontos de vista diferentes, com um dizendo “Mesmo que eu ache que a pessoa tem uma opinião burra, eu comecei a tentar entender e ver se ela tem um ponto. E me ajudou a ver pontos importantes em opiniões completamente opostas”.
7) Os moradores que tem alguma ocupação profissional na casa representam uma minoria. Das respostas obtidas, destacam-se explicações de como a convivência na república os ajudou a “lidar com pessoas” no trabalho. Um morador em particular, que faz a função do controle financeiro da casa, comenta como precisou aprender a usar, criar e organizar planilha, além de administrar o dinheiro, e como isso o ajudou em seu trabalho.
2.2 Neuza Ramos
Neuza Ramos, ou como a conhecemos, “Neuzinha”, trabalha na república Malibu há 16 anos (2024). É um sentimento universal entre os moradores que passam pela casa a considerar como uma segunda mãe. Foi requisitado que ela contasse um pouco sobre sua experiência na casa, conversa realizada separadamente das conversas com os moradores. A transcrição apresentada aqui não é direta, mas se mantém fiel às suas palavras:
“Aqui foi minha primeira experiência com trabalhar em repúblicas. Antes disso tinha só trabalhado em fábrica e casa de família. Quando entrei aqui já gostei bastante, lembro que na época eram só 9 moradores, aí foi aumentando com o tempo. “Me sinto muito bem aqui, tenho uma convivência com os meninos como de mãe e filho, você sabe que considero vocês filhos do coração. Não só isso, mas também considero todos amigos em quem posso contar, e cada dia gosto mais de trabalhar aqui e sinto nossa convivência sempre melhorando”
“Eu vejo que tem uns meninos que chegam aqui mais fechados né? Aí com o tempo eles vão se abrindo, vão ficando mais confiantes no dia a dia. Eu procuro conversar com eles sempre, acolher, sei que muitos nunca moraram longe dos pais e é bem diferente né? Mas eles vão aprendendo muito.”
3. Discussão
Agora discutiremos um pouco o que foi extraído das conversas, retomando algumas respostas às perguntas e conectando a disciplinas, teorias e estudos que podem nos ajudar a entender melhor a relação indivíduo-instituição na república. Começaremos falando das perguntas 3 (sobre conversas do dia a dia) e 6 (quanto as ideias são desafiadas) feitas ao moradores, visto que muito do que foi encontrado no restante das respostas pode ser relacionado a essa dinâmica.
Vamos retomar: As conversas na república foram caracterizadas como variadas, fluídas e contendo diversos pontos de vista diferentes, que pode ser relacionada à teoria da variação linguística. Esta teoria destaca não somente como a linguagem muda através do tempo, mas como é flexível e se adapta conforme os participantes do discurso e o contexto. Essa exposição a um ambiente em constate mudança discursiva, repleto de ideias novas ou contraditórias, proporciona ao indivíduo um contato com essas diferenças linguísticas e facilita nosso entendimento dos relatos dos moradores sobre, por exemplo, influência positiva na comunicação, abertura a novas responsabilidades e desenvolvimento do senso coletivo na vida em república.
Bakhtin introduz o conceito de "polifonia", que se refere à multiplicidade de vozes e perspectivas presentes na linguagem. Nas conversas cotidianas, a variedade linguística reflete essa polifonia, onde diferentes vozes e estilos se entrelaçam, criando uma tapeçaria rica e dinâmica de significados. Além disso, Bakhtin também enfatiza a natureza dialógica da linguagem, destacando como as palavras e os discursos são moldados em resposta a outros discursos. Nas discussões mais sérias, a diversidade de perspectivas reflete esse diálogo constante entre vozes diferentes, influenciando a construção de significado.
São dessas conversas que surgem os momentos de ideias sendo desafiadas, criando uma dinâmica constante de negociação de significados. Quando as ideias são confrontadas ou questionadas, os moradores são desafiados a explicar, justificar e, às vezes, reconsiderar suas perspectivas. Isso cria um ambiente de diálogo constante, onde as interpretações individuais são submetidas à avaliação coletiva. Podemos nos apoiar na teoria da interação simbólica para nos ajudar a entender esse processo. Essa teoria propõe que o significado seja construído socialmente por meio da interação entre indivíduos. Ela enfatiza o papel fundamental da linguagem e dos símbolos nesse processo. Na interação simbólica, as pessoas atribuem significado às palavras e aos gestos com base nas suas interpretações compartilhada. Essa teoria difere do dialogismo de Bakhtin principalmente em seu foco: Enquanto Bakhtin foca na natureza dialógica da linguagem, a teoria da interação simbólica concentra-se na forma como os símbolos são usados para criar significados nas interações sociais diretas.
Falando de ideias sendo desafiadas, pode ser pertinente explorarmos o conceito de desconfirmação institucionalizada. Geralmente associada ao ambiente acadêmico, refere-se ao processo de questionamento aberto em uma dada disciplina, promovido por uma diversidade de pontos de vista. No livro “The Coddling of The American Mind” , de Greg Lukianoff e Jonathan Haidt, os autores exploram a importância desse processo, como meio de promover uma autenticidade intelectual mais profunda, expor estudantes a ideias desafiadoras para fomentar resiliência emocional e mental, praticar gestão de conflitos, entre outros. Também destacam que, por exemplo, uma falta de diversidade de perspectivas políticas no ambiente acadêmico pode comprometer esse importante processo, gerando polarização, pensamento de grupo e um processo científico menos eficaz e confiável. Mas quais são as semelhanças e diferenças com esse processo em uma república?
Semelhanças:
Desafio de Ideias: Tanto na república quanto em ambientes acadêmicos, há uma propensão para desafiar ideias preestabelecidas. Em ambas as situações, a desconfirmação é uma prática que visa estimular o pensamento crítico e a revisão constante de perspectivas.
Negociação de Significados: Tanto na interação simbólica na república quanto na desconfirmação institucionalizada acadêmica, ocorre uma negociação constante de significados. Os participantes precisam articular e justificar suas posições, contribuindo para a construção compartilhada de entendimento.
Diferenças:
Contexto Institucional: A desconfirmação institucionalizada em ambientes acadêmicos muitas vezes ocorre em um contexto mais formal e estruturado, como salas de aula, conferências acadêmicas ou debates. Por outro lado, na república, a interação pode ser mais informal e acontecer em diversos cenários do cotidiano.
Foco Temático: Enquanto a desconfirmação institucionalizada em ambientes acadêmicos frequentemente se concentra em teorias, pesquisas e paradigmas científicos, na república, a variedade de tópicos pode ser mais abrangente, incluindo questões práticas do convívio diário.
Metodologia e Formalidade: A desconfirmação institucionalizada em ambientes acadêmicos muitas vezes segue procedimentos mais formais, como revisão por pares, análises de funil, apresentações acadêmicas e defesas de teses. Na república, a dinâmica pode ser mais informal e baseada na experiência pessoal.
Mesmo com essas diferenças, podemos ver como o processo também é benéfico na república ao olharmos para os relatos de como os moradores se vêem sendo capazes de lidar com opiniões opostas, bem como com as pessoas que a carregam, indicando uma capacidade desenvolvida de negociação e compreensão. A habilidade de negociação social desempenha um papel crucial no desenvolvimento humano, influenciando as interações sociais ao longo da vida. A psicologia do desenvolvimento destaca a importância dessa habilidade em várias fases da vida, e há evidências de que crianças já começam a desenvolver essas habilidades por volta dos 4 anos. Com o desenvolvimento, as crianças começam a superar o egocentrismo, tornando-se mais capazes de consideraras perspectivas dos outros. (Piaget, 1926).
Esse texto não estaria completo sem a menção do aspecto semelhante a uma família que emerge em uma república. Não somente como visto aqui na relação entre Neuza e os moradores, mas de maneira geral entre os moradores de grande parte das repúblicas. É bastante comum encontrar a comparação sendo feita pelos moradores.
Em suma, a república serve como uma espécie de laboratório social que, por meio de suas dinâmicas particulares, mediadas pelo diálogo, promove o desenvolvimento pessoal em diversas dimensões, preparando os indivíduos para enfrentar os desafios e as complexidades da vida adulta. As habilidades e perspectivas adquiridas nesse contexto podem ter impactos duradouros na vida pessoal e profissional dos moradores.
Solos
Ensaio fotografico
Por: Thayline Rodrigues
Corpo dançante
Por: Stefanie Alves dos Santos e Beatriz Habara Morgon
Entre gentes estáticas emerge um corpo dançante. Esse acontecimento, na rodoviária de São Carlos, inspirou o poema de Stefanie Alves dos Santos, ilustrado com fotos de Beatriz Habara Morgon.
Flanantes
Todo conteúdo desta edição do projeto Flanar Aprendiz, um verbo para os novos tempos foi produzido durante as aulas do Laboratório 8 do curso de bacharelado em linguística, disciplina ministrada pelo Professor Pedro Henrique Varoni de Carvalho. A criação das pautas, sua execução, edição e finalização foram conduzidas pelos alunos, com o apoio de uma equipe de estagiários e tutores. Os alunos foram convidados à experiência de flanar pela cidade de São Carlos, identificando discursos sociais e poéticos que circulam no território.
Equipe
Graduação em Linguística
Beatriz Gomes da Silva
Beatriz Habara Morgon
Clariane Molina de Lima
Giovanna Costa Silva
Isabela Herrera Marques
Isabela Santos de Freitas
Johann Mattias Faigle do Nascimento
Lucas Augusto Pires Contessotto
Maria Gabriela Frias Gobbi Marciano
Nicole Ferrari Dias
Noá Silva Trevisan
Raul Yudi Mendes Yamada
Rodrigo do Prado Pazzini
Stefanie Alves dos Santos
Vitoria Fernandes Passos Castilho
Thayline Rodrigues Lucas
Estagiários
PESCD (Programa de Estágio Supervisionado de Capacitação Docente)
Cássia dos Santos - Doutoranda PPGL/UFSCar
Bueno Souza - Mestranda PPGL/UFSCar
Vinícius Ribeiro - Mestrando PPGL/UFSCar
Estagiários (Bacharelado em Linguística)
Bruna Laisa Ferreira
Carolina Peternela Colosso
Voluntário
Daniel Perico Graciano
Coordenadação
Pedro Henrique Varoni de Carvalho